Catadores Legal: achados iniciais

Segundo o Movimento Nacional dos Catadores e das Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR), existem no Brasil cerca de 800 mil catadores, sendo 70% mulheres. Ferreira, Silva e Silva (2023) afirmam que foi a partir da década de 1990 que muitas dessas mulheres catadoras, em busca de melhores condições de vida e de trabalho, passaram a se organizar junto aos catadores em grupos informais, associações e cooperativas locais, tendo um papel decisivo inclusive na formação do MNCR. 

Analisar o papel das catadoras dentro da categoria e do contexto social, econômico e ambiental brasileiro passa inevitavelmente por considerar as especificidades decorrentes das desigualdades sociais e de gênero às quais elas também estão submetidas. As catadoras mulheres cis e trans, além de estarem submetidas às vulnerabilidades sociais, econômicas e relativas a sua saúde, ainda sofrem preconceito em relação ao seu trabalho, à sua classe, ao seu gênero, à orientação sexual e à sua cor. 

Existe uma relação intrínseca e de difícil ruptura entre gênero, pobreza e trabalho precário. A baixa escolaridade e a ausência de qualificação profissional, o peso que o trabalho reprodutivo ocupa na vida das mulheres pobres e a necessidade de adquirir renda para o sustento da família direcionam essas mulheres para ocupações precárias (Paiva, 2017, p. 160).

Pensando nisso, o Instituto de Direito Coletivo (IDC) desenvolveu o projeto “Catadores Legal”. Sendo uma entidade de assessoramento e garantia de direitos, o IDC trabalha para a formação de uma sociedade mais crítica e consciente de seus direitos, através da orientação, conscientização e defesa do pleno exercício dos direitos e interesses coletivos. 

O projeto “Catadores Legal”, desenvolvido em parceria com o Fórum Econômico Mundial (WEF) e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,  além da formalização dos coletivos, reconhece o papel das mulheres nessas cooperativas, desenvolvendo as seguintes ações: (i) realização de um curso de capacitação para empoderar 40 lideranças femininas dos coletivos na manutenção da formalização; e (ii) encaminhamento de integrantes dos coletivos para programas governamentais aos quais têm direito – principalmente programas de transferência de renda e proteção integral à infância. Nos dias 30 e 31 de agosto de 2023, o projeto ofereceu 16 horas de oficinas para capacitar, presencialmente, as mulheres líderes nas áreas de cooperativismo e associativismos; gestão financeira; sustentabilidade e empreendedorismo.

Paralelamente, o IDC está desenvolvendo uma série de ações para garantir o acesso das catadoras e catadores a programas de proteção social e a formação de cooperativas, visando a melhoria nas condições de trabalho e renda. Essas ações são importantes, pois os grupos de catadores são, muitas vezes, formados por pessoas pretas, mulheres, idosos e pessoas com deficiência, que são grupos sociais que historicamente sofrem com a discriminação e a exclusão.

Em linha com os pressupostos assumidos pelo projeto, Ferreira, Silva e Silva (2023) e Paiva (2017) assinalam algumas especificidades do trabalho desenvolvido pelas catadoras. Os autores notam a presença de uma grande rotatividade das trabalhadoras nas organizações, o que é atribuído a diversos motivos, desde as adversidades da vida privada, a dureza do trabalho ou a possibilidade de outra ocupação que lhes proporcione melhor renda. Por outro lado, as mulheres apresentam um enorme potencial no desenvolvimento do trabalho, garantindo renda, valorização e reconhecimento, melhorando a autoestima, adquirindo novos conhecimentos e habilidades. 

No entanto, é preciso destacar que, apesar da ascensão das mulheres catadoras como figuras proeminentes da categoria, ainda persistem dificuldades para obter reconhecimento político e para ocupar posições de liderança, tanto nas organizações locais quanto nos espaços nacionais. São estereótipos que constantemente reforçam a divisão por gênero do trabalho e impedem as mulheres de acessar esses lugares de direção. Nesse contexto, o IDC utilizou como estratégia para enfrentar essa situação o reconhecimento e fortalecimento da qualificação das mulheres catadoras, assim como o estímulo às articulações das catadoras para afirmar o seu lugar de fala nas organizações. 

Além da capacitação das lideranças femininas, o projeto Catadores Legal prestou atendimento socioassistencial aos integrantes dos coletivos e pessoas jurídicas de catadores de recicláveis em formalização ou regularização. Ao todo foram atendidos diretamente 152 catadoras e catadores pela assistência social do IDC e foram realizadas 20 formalizações/regularizações de cooperativas de 7 municípios do estado do Rio de Janeiro. 

Demandas sociais identificadas no projeto Catadores Legal

Das principais demandas atendidas, estão questões relacionadas ao fornecimento de documentação e medicamentos, além da demora na inclusão dos programas de transferência de renda, como o bolsa família e o benefício de prestação continuada (BPC). 

No que se refere à demora no trâmite dos benefícios do Bolsa Família, o Instituto de Direito Coletivo oficiou os Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS) dos municípios com casos identificados, por previsão expressa de participação e controle no art. 16 da Lei nº 14.601 de 2023, além de solicitar informação à Defensoria Pública da União e ao Ministério Público Federal. 

A morosidade na análise e no deferimento nos programas de transferência de renda não são exclusivas à categoria dos catadores de recicláveis. Em abril de 2023, o Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome (MDS) elaborou o Programa de Fortalecimento Emergencial do Atendimento do Cadastro Único no Sistema Único da Assistência Social (PROCAD-SUAS) para reconhecer e superar as deficiências no Cadastro Único. No documento, o Ministério afirma que:

“A existência de um volume significativo de registros unipessoais e de cadastros com informações inconsistentes ou desatualizadas no Cadastro Único tem permitido a membros de uma mesma família, que estão cadastrados separadamente, a receber mais de um benefício, ao mesmo tempo em que segmentos mais vulneráveis da população ficam excluídos dos programas sociais”.

Apesar dos problemas já identificados no CadÚnico, a Portaria nº 810/2022 do Ministério da Cidadania, que define os procedimentos do respectivo banco de dados, não faz menção expressa aos catadores de recicláveis (ou à categoria coletores de material reciclável) como prioritários na definição como “Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos (GPTE)”. Essa ausência de menção pode dificultar a identificação e o cadastramento dos catadores de recicláveis no CadÚnico. Além disso, pode levar a uma subnotificação do número de catadores de recicláveis cadastrados no sistema, o que pode limitar ainda mais o acesso a benefícios sociais. 

O CadÚnico é um instrumento fundamental para a implementação de políticas públicas voltadas à população de baixa renda. Além de ser a base para o acesso a programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, o CadÚnico também possibilita a realização de estudos que subsidiam a formulação de políticas públicas mais eficazes para a superação da vulnerabilidade econômica e social.

Da subnotificação da categoria coletores de material reciclável

Segundo dados da “Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único” do Governo Federal, em agosto de 2023, havia 389.401 famílias cadastradas na categoria “coletores de material reciclável”, sendo 314.583 famílias beneficiárias do programa de bolsa família, totalizando uma cobertura de aproximadamente 80,7% do universo cadastrado. Para o estado do Rio de Janeiro, foco do projeto Catadores Legais, observa-se o quantitativo de 44.373 famílias cadastradas na categoria “coletores de material reciclável”, sendo 37.727 beneficiárias do programa de bolsa família, totalizando aproximadamente 85% de cobertura.

Dos municípios atendidos no projeto Catadores Legal, observou-se uma subnotificação na categoria “coletores de material reciclável”, uma vez que em, pelo menos um município, o projeto contava com o dobro de coletores de material reciclável do que o cadastrado no Cadastro Único do governo federal. Os desafios identificados no Cadastro Único para a categoria de coletores de material reciclável apontam para a necessidade de ações para garantir o acesso aos programas de transferência de renda a esse segmento da população.

Constatou-se nos municípios atendidos pelo Projeto Catadores Legal a mesma média estadual de 85% de cobertura dos coletores de material reciclável no programa do Bolsa Família, entretanto, em se tratando de um público altamente vulnerabilizado e com indicativos de subnotificação da categoria, torna-se ainda mais urgente a inclusão total nos programas de transferência de renda. 

Conclusão

A partir do projeto “Catadores Legal”, desenvolvido pelo Instituto de Direito Coletivo, foi possível identificar carências e potencialidades do trabalho de catadores e catadoras. Ao mesmo tempo que as mulheres sofrem com o preconceito e a desigualdade de acesso a direitos, as catadoras demonstram enorme potencial para assumirem posições de liderança na categoria. 

Acreditamos que a inclusão dos catadores de materiais recicláveis, em especial das mulheres catadoras, só será possível com a valorização e qualificação de seu trabalho, de modo a garantir a integração com os demais agentes envolvidos na cadeia produtiva de resíduos sólidos. A incorporação de novas tecnologias no trabalho dos catadores, como a rastreabilidade dos resíduos, é uma possibilidade identificada pelo IDC para aumentar a eficiência, qualificar o trabalho e fortalecer a atuação dessa categoria.

Nesse sentido, as catadoras podem ter uma atuação preponderante na construção de um novo papel da categoria na promoção da justiça ambiental, igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável. 

Por fim, a inclusão dos catadores de materiais recicláveis, em especial das mulheres catadoras, é uma questão fundamental para a promoção da justiça social e ambiental, igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável. A implementação de ações para superar os desafios identificados contribuirá para a efetividade dessa inclusão.

Luiz Manoel Estrella

Tatiana Bastos

 

 

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