Quando fumar se tornou um fato jurídico

A indústria do cigarro nasceu no final do século XIX com o uso de maquinário de produção em massa de cigarros. Até então, o uso do tabaco, existente há séculos, estava restrito a pequena escala de produção e um pequeno grupo consumidor. A massificação do consumo foi possível por inúmeras campanhas de marketing, aliadas ao consumo idealizado da elite e mundo artístico.

Além das campanhas de marketing promovendo a aceitação social do uso do cigarro, o produto em si passou por uma série de reformulações com aditivos acrescidos ao tabaco. A partir de documentos internos da indústria do cigarro disponibilizados em processos judiciais movidos nos Estados Unidos contra as sete maiores indústrias de cigarro do mundo, é possível estimar que uma parcela importante do conteúdo do cigarro, além do tabaco, seja adicionada pela indústria com os mais diversos propósitos, que vão desde tornar o sabor do produto mais palatável, até mesmo aumentar a absorção de nicotina pelo organismo[1].

O produto atualmente vendido é fruto de produção industrial massificada, pela qual inúmeros processos químicos são realizados para se alcançar o cigarro que é disponibilizado aos consumidores. Segundo a Organização Mundial de Saúde[2], a manipulação de conteúdo, design e emissões estão relacionados à toxicidade e ao potencial de causar dependência dos produtos de tabaco.

Que o cigarro faz mal, essa geração já sabe. O que é novo, então?

A novidade é que a Advocacia-Geral da União (AGU) ingressou em 2019 com uma ação civil pública em face da Indústria do Cigarro requerendo ressarcimento da União pelos custos do Sistema Único de Saúde no tratamento das doenças relacionadas ao tabagismo. A ação foi proposta na 1ª Vara Federal de Porto Alegre e engloba os gastos do SUS no país inteiro.

Um dos principais fundamentos da ação não passa pelas consequências da escolha individual do consumidor ao comprar o produto, mas, sim, pela responsabilidade da indústria tabagista pelo dano causado ao Sistema Único de Saúde pela produção do cigarro. A receita auferida pela indústria do cigarro está baseada em um dano coletivo à sociedade, que é obrigada através do financiamento público da saúde a arcar com as consequências do cigarro.

A tese é velha conhecida da responsabilidade civil no direito do consumidor. Como a responsabilidade civil do fornecedor é objetiva, não se analisa culpa na conduta. As consequências que a atividade da indústria tabagista gera não pode ser repassada à sociedade, uma vez que o risco da atividade é do fornecedor. Segundo a inicial da AGU, a primeira vitória em ações desse tipo ocorreu em 1994 no Estado do Mississippi. A alegação principal do Estado do Mississippi foi que as doenças atribuíveis ao tabaco causavam dano ao erário público, na medida em que este era obrigado a pagar pelos cuidados médicos, instalações e serviços necessários para os cidadãos cuja saúde fora afetada pelos cigarros produzidos pela indústria do tabaco[3].

E como está o processo da AGU proposto em maio de 2019?

Em fevereiro de 2020, a magistrada de 1º grau certificou a validade de citação dos réus no Brasil, embora tenha ocorrido negativa de recebimento por parte das subsidiárias. Contra este ato, cinco agravos de instrumento foram propostos. Como podemos constatar, é briga para cachorro grande. Parabéns à AGU que, após 25 anos do primeiro precedente contra a indústria tabagista, resolveu entrar na briga pelo SUS e contra o enriquecimento desmedido das empresas tabagistas.

Fontes:

[1] https://www.industrydocuments.ucsf.edu/tobacco

[2] https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43647/TRS945_eng.pdf;jsessionid=1290C04D5C674C46F372B6D6846D2D5F?sequence=1

[3] Petição inicial AGU, pp. 209.

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